Jacó, Labão e a jurisprudência local – Lições bíblicas para a arte da negociação

Jacó, Labão e a jurisprudência local – Lições bíblicas para a arte da negociação

Certa vez, Jacó firmou contrato verbal no sentido de trabalhar por sete anos para receber como esposa a filha caçula de Labão, chamada Raquel. Cumprida sua parte no contrato, Jacó exigiu de Labão a contraprestação. Preparou-se uma festa de casamento, mas a filha efetivamente entregue foi Lia, a mais velha. Indignado, Jacó questiona Labão e esse responde:

– Aqui não é costume entregar em casamento a filha mais nova antes da mais velha.

Simples e direto. Por parte de Jacó, apesar da frustração, só coube aceitar e trabalhar mais sete anos pela filha Raquel.

Qual lição podemos tirar dessa história que está no capítulo 29 do Livro de Gênesis? Várias, mas quero abordar a questão da importância de, em qualquer negociação, ter um conhecimento acerca de como decidem os tribunais, caso seu acordo se transforme numa demanda judicial.

Na época bíblica, em muitos lugares não havia juízes estabelecidos, tribunais ou sistemas judiciários, as divergências eram resolvidas dentro das próprias tribos ou comunidades, geralmente pelos anciões.

Ora, se Jacó não aceitasse a resposta de Labão e resolvesse levar adiante a questão, sem contudo o uso da força física, provavelmente não teria êxito, pois se de fato aquele era o costume, certamente que seria a solução imposta por quem tivesse a função de dizer o direito naquele caso.

Nos dias atuais, em que abrimos mãos do poder de autotutela de nossos direitos, confiando-o ao Estado para que julgue as demandas por meio de seu sistema judiciário, a situação não é muito diferente.

Ainda que se estabeleça um contrato claro e objetivo, e que ambas as partes o aceitem sem questionamentos, se no momento do cumprimento qualquer uma delas não estiver satisfeita com a obrigação que assumiu e se as decisões dos tribunais – que quando são reiteradas no mesmo sentido chamamos de jurisprudência – apontarem para uma solução que mais convém, é possível ingressar com medidas judiciais para rever o pacto firmado e então pedir que a solução aplicável seja aquele que a jurisprudência já tem indicado.

Muitos podem questionar que, se for assim, não há segurança jurídica nos contratos. Realmente, segurança contratual absoluta não há, como também não há direito absoluto. Aliás, nem mesmo os tão valiosos direitos à vida ou à saúde são considerados absolutos pelo ordenamento jurídico. Basta imaginar algumas situações hipotéticas que logo se percebe que não há direito ou garantia absoluta, nem mesmo desses valiosos direitos humanos fundamentais. Então, muito menos haverá direito contratual absoluto e completamente livre de eventual revisão.

Evidente que também não é tão simples rever uma obrigação contratual. Existem requisitos, variáveis, riscos, entre outros fatores a serem preenchidos e considerados, porém a possibilidade geralmente existe, o que muda é a chance de êxito, especialmente diante do cenário de como tem julgado os tribunais (“aqui não é costume…”).

A tendência será a de manter o contrato tal como foi estabelecido, buscando compreender suas intenções – por isso, quanto mais claro o contrato, melhor – mas sempre passará por filtros que avaliarão a boa fé dos contratantes, a função social do contrato, eventuais circunstâncias novas e imprevisíveis capazes de abalar o equilíbrio e a proporcionalidade do contrato.

No caso em análise, Jacó era da região e mesmo assim não sabia do costume de se casar primeiro a filha mais velha? Ora, até hoje os filmes retratam esse costume entre os judeus. Na época isso devia ser ainda mais forte. Casar primeiro a filha mais jovem, seria uma desonra para a mais velha e, talvez, até para a própria família, então, era justo o que Jacó pedia? Aliás, por sua história recente, ele mesmo não era um grande exemplo de honestidade – veja como enganou o pai antes de fugir para viver com Labão.

Enfim, dependendo da envergadura da negociação que se pretende iniciar, é fundamental ter uma assessoria jurídica diligente, pois algumas questões podem ser tão complexas que não basta nem mesmo saber apenas como é a jurisprudência do momento em que o acordo foi feito, mas se torna muito útil tentar entender para qual sentido poderão caminhar as novas decisões, pois podem surgir divergências, o que ocorre especialmente quando há mudança nos integrantes das turmas julgadoras. Assim, um cenário que hoje parece favorável, depois de cinco ou dez anos, se o processo chegar ao tribunal, pode ter resultado bastante diferente.

Por isso, para se aprimorar na arte da negociação a grande lição a ser extraída dessa história bíblica é a de, quando for tratar algo, convém ter conhecimento de como são os costumes do local onde o contrato será cumprido ou eventual processo será julgado, como é o entendimento da justiça local e, se possível, buscar até mesmo fazer uma predição de como é a tendência para os próximos anos. Claro, tudo de acordo com a complexidade daquilo que está envolvido.

Sobre o Autor

H. S. Lima

H. S. Lima é escritor, advogado e palestrante. Tem como propósito de vida compreender os princípios eternos contidos principalmente nos cinco primeiros livros do Antigo Testamento, chamados de Pentateuco ou Torá, identificar a compatibilidade com a mensagem de Jesus Cristo, para então ensinar como observá-los na vida pessoal e profissional.

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