“A tolerância é
a melhor das religiões.”
(Victor Hugo)
É espetacularmente bela a obra Tratado sobre a intolerância, escrita por Voltaire, um dos maiores pensadores franceses de todos os tempos. Leitura agradável, repleta de informações muito interessantes. Publicada pela primeira vez há cerca de 250 anos (década de 1760), é daquelas que prendem a atenção e que deixam saudades quando terminam.
Voltaire aborda dois pontos principais: a intolerância religiosa e o perigo de os tribunais julgarem processos com base no “clamor público”.
Ele relata o caso da família Calas. Após um filho cometer suicídio, o pai foi acusado e apressadamente condenado à cruel morte pela “roda” (forma de tortura que existia na época) e os demais membros da família tiveram as vidas igualmente desgraçadas.
O julgamento foi célere e sem preocupação com a coleta de provas, porque toda a população já “sabia” que era o pai o assassino do filho. Um detalhe: a referida família era protestante, enquanto tanto o jovem suicida quanto quase toda a cidade eram católicos. E isso numa época de acirradas perseguições religiosas, de “auto de fé”, de inquisição etc.
Porém, cerca de três anos depois, o Tribunal francês reviu a decisão dos magistrados de Toulouse (a primeira decisão também foi colegiada) e declarou a inocência da família Calas. Dado o clamor público, o próprio rei Luís XV indenizou-a com 36.000 libras.
Esse triste acontecimento foi utilizado como “pano de fundo” para Voltaire adentrar no tema mais amplo, apresentando bases filosóficas e racionais que permitem rechaçar toda forma de intolerância que leva alguém a atacar, perseguir ou desprezar outro ser humano por conta de questões políticas, sexuais, filosóficas, raciais, religiosas etc.
Nos dias atuais, há a chamada “polarização”, que é apenas uma faceta da velha e “intolerável intolerância”, que nunca deixou de existir, mas que em determinadas épocas é mais visível e leva à violência não só moral, mas também física.
Voltaire afirma que a tolerância é um dever natural e humano, pois todos precisamos, pelo menos, nos suportar em favor da boa convivência.
O direito humano não pode estar baseado em nenhum caso senão nesse direito de natureza e no grande princípio, o princípio universal de um e de outro, que é, em toda a terra: “Não faça o que não gostaria que lhe fizessem”. Ora, não vemos como, segundo este princípio, um homem pudesse dizer a outro: “Creia naquilo que eu creio e rejeite aquilo que você não pode crer ou morrerá”. É o que se diz em Portugal, na Espanha, em Goa. Em alguns outros países não se contentam em dizer isso, mas dizem: “Creia ou o odiarei; creia ou lhe farei todo o mal que puder; monstro, você não tem minha religião, portanto não tem religião alguma; é necessário que você se torne o horror de seus vizinhos, de sua cidade, de sua província”. (Tratado sobre a intolerância, p. 41)
Infelizmente a intolerância continua fazendo vítimas. Pode até não matar fisicamente com a mesma frequência daquela época (às vezes ainda mata), porém se apresenta com um viés igualmente terrível: a violência “moral”.
Tornou-se quase comum atacar os que pensam diferente. Não se debatem as ideias, as fundamentações teóricas e empíricas que justificam determinado pensamento, crença ou ideologia política, rapidamente se parte para as acusações pessoais e a inimizade está feita. Tenta-se destruir não o pensamento, mas a própria pessoa que crê diferente. Como já não é possível queimá-la viva, numa fogueira, como na época de Voltaire, então se ataca por meio da mídia a moral, a família, a profissão daquele que não se tolera.
CONTINUA…
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